A missão dos governantes consiste em promover a felicidade da sociedade, punindo e recompensando. A parte da missão do governo que consiste em punir constitui mais particularmente o objeto da lei penal. A obrigatoriedade ou necessidade de punir uma ação é proporcional à medida que tal ação tende a perturbar a felicidade e à medida que a tendência do referido ato é perniciosa. A felicidade consiste naquilo que já vimos, ou seja, em desfrutar prazeres e em estar isento de dores.
BENTHAM, J. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. São Paulo: Abril Cultural, 1974 (adaptado).
Qual perspectiva de justiça emerge da relação, estabelecida no texto, entre punição e felicidade?
A) Aplicação de meios para atingir um fim.
B) Imposição de regras para estabelecer um dever.
C) Sobreposição de princípios para fundamentar um direito.
D) Criação de parâmetros para reconhecer uma prescrição.
E) Elaboração de convenções para referendar um costume.
✍ Resolução Em Texto
- Matérias Necessárias para a Solução da Questão:
- Filosofia (Ética, Utilitarismo, Consequencialismo)
- Filosofia do Direito (Teoria da Pena)
- Interpretação de Texto Filosófico
- Tema/Objetivo Geral: Identificar a estrutura do raciocínio utilitarista, que entende a justiça e a punição como instrumentos (meios) para alcançar um objetivo maior (o fim da felicidade social).
- Nível da Questão: Difícil.
- A questão é conceitual e abstrata. Não basta entender as palavras do texto; é preciso identificar a estrutura filosófica subjacente ao argumento. As alternativas são formuladas em um metanível, descrevendo “tipos” de raciocínio, o que exige um alto grau de abstração do candidato.
- Gabarito: A
- A alternativa está correta porque, para Bentham, a punição não é um valor em si mesma. Ela é uma ferramenta, um instrumento (um meio) cuja única justificativa é sua capacidade de produzir um resultado desejado: a felicidade da sociedade (o fim).
PASSO 1 – O QUE A QUESTÃO QUER? (O MAPA DA MINA)
Decodificação do Objetivo: Em bom português, a missão é: “O texto de Bentham explica a lógica por trás da punição, conectando-a à ideia de felicidade. Qual das alternativas melhor descreve a forma ou a estrutura desse raciocínio?”
Simplificação Radical (A Analogia Central): Pense em um médico tratando um paciente doente. O objetivo final (o Fim) é a saúde e o bem-estar do paciente (a “felicidade”). A doença é o que perturba esse bem-estar. O tratamento, que pode ser um remédio amargo ou uma cirurgia dolorosa (a “punição”), não é algo bom por si só. O médico só o aplica porque ele é a ferramenta, o instrumento (o Meio) necessário para alcançar a saúde. A justiça, para Bentham, funciona exatamente como este médico: ela aplica um remédio amargo (punição) para curar a sociedade e restaurar a felicidade.
Plano de Ataque (O Roteiro da Investigação):
- Identificar o Objetivo Final: Qual é a meta suprema que os governantes devem buscar, segundo o texto?
- Identificar a Ferramenta: Qual é o instrumento que a lei penal usa para ajudar a alcançar esse objetivo?
- Analisar a Lógica da Conexão: Como a ferramenta se relaciona com o objetivo? Ela é um valor em si mesma ou sua validade depende do resultado que ela produz?
- Realizar a Autópsia: Vamos julgar cada alternativa para ver qual delas descreve com precisão essa lógica de conexão.
PASSO 2 – DESVENDANDO AS FERRAMENTAS (A CAIXA DE FERRAMENTAS)
Para decifrar este caso filosófico, nossa melhor ferramenta é uma Tabela de Conceitos. Ela vai organizar as ideias-chave de Bentham e a relação lógica entre elas, revelando a estrutura fundamental de sua perspectiva de justiça.
| Conceito-Chave no Texto | Função dentro do Argumento | Definição no Texto | Análise do Detetive |
| Felicidade | O FIM / O OBJETIVO FINAL | “Desfrutar prazeres e em estar isento de dores.” | Esta é a meta suprema, o único bem que tem valor em si mesmo. Tudo o mais é julgado por sua capacidade de produzir felicidade. |
| Ação Criminosa | O PROBLEMA / O OBSTÁCULO | Uma ação que “tende a perturbar a felicidade”. | O crime não é “mau” por violar uma lei divina ou um dever abstrato. Ele é “mau” porque suas consequências são a dor e a infelicidade. |
| Punição (Lei Penal) | O MEIO / A FERRAMENTA | A parte da missão do governo que consiste em “punir”. | A punição é um instrumento, uma tecnologia social. Ela também causa dor, então seu uso deve ser cuidadosamente calculado. |
| Justiça | A LÓGICA / O CÁLCULO | “A necessidade de punir […] é proporcional à medida que tal ação tende a perturbar a felicidade.” | A justiça não é um princípio cego. É um cálculo de custo-benefício: a dor da punição (o meio) deve ser menor que a dor que o crime causaria (o problema), a fim de maximizar o bem-estar geral (o fim). |
Conclusão Forense da Tabela: A análise conceitual mostra de forma inequívoca que a perspectiva de justiça de Bentham é instrumental. Ele não pergunta “Esta ação é correta em princípio?”, mas sim “Quais são as consequências desta ação para a felicidade geral?”. A punição é justificada não por si mesma, mas como um meio para se atingir o fim da felicidade social.
PASSO 3 – INTERPRETAÇÃO GUIADA (MÃO NA MASSA)
Nossa tabela já revelou a estrutura do argumento. A punição, para Bentham, é um instrumento, uma tecnologia social.
- O texto diz que a necessidade de punir é proporcional ao quanto a ação perturba a felicidade. Isso mostra que não é um mandamento absoluto. É um cálculo.
- Se uma punição causasse mais dor e infelicidade do que o crime que ela pretende coibir, para Bentham, essa punição seria injusta e imoral.
- A justiça, portanto, não é cega. Ela é uma “calculadora” que mede as consequências de cada ato em termos de prazer e dor.
🚨 ARMADILHA CLÁSSICA! 🚨
CUIDADO! A armadilha mais sedutora é a alternativa (B), “Imposição de regras para estabelecer um dever”. Essa visão, conhecida como deontologia (associada a filósofos como Kant), defende que certas ações (como punir um culpado) são um dever moral absoluto, independentemente das consequências. O erro é confundir a lógica de Bentham (que olha para os resultados) com a lógica deontológica (que olha para o dever). O texto de Bentham é o oposto do “dever por dever”.
A Bússola (O Perfil do Culpado):
- Síntese do raciocínio: A investigação do texto mostra uma lógica puramente instrumental. A punição é uma ferramenta. A felicidade é o objetivo. A justiça é o processo de usar a ferramenta da melhor forma para alcançar o objetivo.
- Expectativa: A alternativa correta deve descrever essa relação instrumental de um meio sendo utilizado para se chegar a um fim.
PASSO 4 – ALTERNATIVAS COMENTADAS (A AUTÓPSIA)
Vamos agora submeter cada alternativa ao nosso detector de mentiras filosófico.
- A) Aplicação de meios para atingir um fim.
- Análise de Correspondência: Esta alternativa é o retrato falado da nossa Bússola. Ela descreve com perfeição a estrutura do raciocínio utilitarista de Bentham: a punição é o “meio”, e a felicidade social é o “fim”.
- Conclusão: 🟢 Alternativa correta.
- B) Imposição de regras para estabelecer um dever.
- A “Narrativa do Erro”: O candidato cai na “Armadilha Clássica”, interpretando a lei penal como uma questão de dever moral absoluto.
- O “Diagnóstico do Erro”: Distrator! O aluno erra ao confundir Utilitarismo com Deontologia. O texto não defende a punição como um dever em si, mas como uma ferramenta cujo uso depende das consequências que ela gera para a felicidade.
- Conclusão: 🟡 Alternativa incorreta.
- C) Sobreposição de princípios para fundamentar um direito.
- A “Narrativa do Erro”: Uma leitura que projeta uma complexidade de múltiplos princípios que não está no texto.
- O “Diagnóstico do Erro”: Fuga ao Tema. O Utilitarismo de Bentham é radicalmente simples: ele se baseia em um único princípio (o Princípio da Utilidade, ou da Máxima Felicidade), e não em uma sobreposição de vários.
- Conclusão: 🔴 Alternativa incorreta.
- D) Criação de parâmetros para reconhecer uma prescrição.
- A “Narrativa do Erro”: O candidato foca no aspecto legalista do texto, mas de forma superficial.
- O “Diagnóstico do Erro”: Reducionismo. O texto faz mais do que criar parâmetros; ele oferece a justificativa filosófica final para esses parâmetros. A alternativa descreve o “como” (parâmetros), mas não o “porquê” (a busca da felicidade).
- Conclusão: 🔴 Alternativa incorreta.
- E) Elaboração de convenções para referendar um costume.
- A “Narrativa do Erro”: O candidato confunde a lógica de Bentham com uma teoria baseada em tradição ou contrato social.
- O “Diagnóstico do Erro”: Fuga ao Tema. Bentham não estava interessado em referendar costumes. Pelo contrário, seu pensamento era radical e reformista, propondo que leis e costumes fossem julgados e, se necessário, descartados, com base em sua capacidade de gerar felicidade.
- Conclusão: 🔴 Alternativa incorreta.
PASSO 5 – O GRAND FINALE (APRENDIZAGEM EXPANDIDA)
Frase de Fechamento: Confirmamos que a alternativa A é a correta. A filosofia de Bentham nos ensina que a justiça não deve ser um altar para sacrifícios a princípios abstratos, mas sim uma oficina de ferramentas para construir o bem-estar social.
Resumo-flash (A Imagem Mental): A justiça de Bentham não usa uma balança, usa uma calculadora: a punição é o custo que se paga para comprar o lucro da felicidade.
Para ir Além (A Ponte para o Futuro): O mesmo princípio de raciocínio “meio-fim” é a espinha dorsal da Engenharia e do Design de Produto. Um engenheiro não projeta uma ponte (o “meio”) por um dever abstrato de construir pontes. Ele a projeta para atingir um “fim” específico: permitir que pessoas e mercadorias cruzem um obstáculo da forma mais segura e eficiente possível. Cada decisão de design — o material usado, a altura dos pilares — é um cálculo de custo-benefício para otimizar o resultado final. A engenharia, assim como a justiça de Bentham, é uma disciplina radicalmente consequencialista.
