A cidade justa é governada pelos filósofos, administrada pelos cientistas, protegida pelos guerreiros e mantida pelos produtores. Cada classe cumprirá sua função para o bem da pólis, racionalmente dirigida pelos filósofos. Em contrapartida, a cidade injusta é aquela onde o governo está nas mãos dos proprietários — que não pensam no bem comum da pólis e lutarão por interesses econômicos particulares.
CHAUI, M. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000.
O texto apresenta uma estrutura de governo da cidade ideal pensada por Platão, que postula uma indissociabilidade entre
A) cognoscência e relação intersubjetiva.
B) mitologia e teorias cosmogônicas.
C) cidadania e primazia da retórica.
D) moralidade e virtudes cardeais.
E) ética e exercício do poder.
✍ Resolução Em Texto
- Matérias Necessárias para a Solução da Questão:
- Filosofia Antiga (Filosofia Política de Platão, Teoria das Ideias)
- Ética e Política
- Interpretação de Texto Filosófico
- Tema/Objetivo Geral: Compreender a tese platônica de que a justiça na cidade (Pólis) depende de um governo exercido por aqueles que possuem o conhecimento do Bem (os filósofos), unindo inseparavelmente o saber ético ao poder político.
- Nível da Questão: Médio.
- A questão exige a tradução da descrição do funcionamento da cidade ideal de Platão para um par de conceitos filosóficos abstratos. O candidato precisa conhecer ou inferir a ideia central do platonismo político: quem governa deve ser quem sabe o que é o Bem e a Justiça, ou seja, deve ser o mais virtuoso e ético.
- Gabarito: E
- A alternativa está correta porque, para Platão, a cidade só é justa quando o poder político (“exercício do poder”) está nas mãos daqueles que têm o conhecimento do Bem e da Virtude (os filósofos), o que representa a dimensão da “ética”.
PASSO 1 – O QUE A QUESTÃO QUER? (O MAPA DA MINA)
Decodificação do Objetivo: Em bom português, a missão é: “O texto descreve o governo ideal de Platão. Segundo essa descrição, quais duas coisas estão tão conectadas que não podem ser separadas para que a cidade seja justa?”
Simplificação Radical (A Analogia Central): Pense na cidade ideal de Platão como um navio em uma perigosa viagem. Para que o navio chegue ao seu destino (o “bem comum”), quem deve estar no comando? Segundo Platão, não pode ser o dono do navio (o “proprietário”), que só pensa no lucro da carga. Deve ser o capitão mais experiente, aquele que entende de navegação, das estrelas e do melhor caminho a seguir (o “filósofo”). Para Platão, comandar o navio (exercer o poder) e saber o melhor caminho (agir com sabedoria e ética) são duas coisas que devem andar juntas. A questão nos pede para identificar essa dupla inseparável.
Plano de Ataque (O Roteiro da Investigação):
- Analisar a Cidade Justa: Vamos identificar quem governa na cidade justa e qual é a sua principal característica e objetivo.
- Analisar a Cidade Injusta: Vamos identificar quem governa na cidade injusta e qual é o seu principal defeito.
- Comparar os Modelos: Ao contrastar os dois modelos, vamos extrair o princípio fundamental que os diferencia.
- Realizar a Autópsia: Vamos julgar cada alternativa para ver qual delas descreve com precisão esse princípio fundamental.
PASSO 2 – DESVENDANDO AS FERRAMENTAS (A CAIXA DE FERRAMENTAS)
Para este caso, a melhor ferramenta é uma Tabela Comparativa de Cidades. Ela vai nos ajudar a contrastar o modelo ideal com o modelo falho, revelando a peça-chave que define a justiça platônica.
| Ponto de Análise | A Cidade Justa (O Ideal) | A Cidade Injusta (A Falha) |
| Quem Governa? | Os Filósofos. | Os Proprietários. |
| Qual sua Qualificação? | São “racionalmente dirigidos”. (Possuem o conhecimento do Bem e da Justiça). | São donos de bens. (Possuem riqueza). |
| Qual seu Objetivo? | O “bem comum da pólis”. | “Interesses econômicos particulares”. |
| Qual o Princípio de Ação? | Agem com base na sabedoria e na virtude. | Agem com base na ganância e no egoísmo. |
Conclusão Forense da Tabela: A investigação comparativa revela que a diferença crucial entre a cidade justa e a injusta não é a estrutura ou as leis, mas o caráter de quem governa. Na cidade justa, o governo é uma questão de sabedoria moral e ética. Na cidade injusta, é uma questão de poder econômico e interesse pessoal. Portanto, Platão postula uma união inseparável entre o bom governo e a moralidade.
PASSO 3 – INTERPRETAÇÃO GUIADA (MÃO NA MASSA)
Nossa tabela já apontou o culpado. O crime da cidade injusta é separar o poder da ética.
- Na Cidade Justa: O poder está com quem tem o conhecimento do que é bom e justo para todos. O governo é uma aplicação prática da filosofia moral.
- Na Cidade Injusta: O poder está com quem tem riqueza, e eles o usam para benefício próprio, ignorando o bem comum. O governo se torna um negócio particular.
A tese de Platão é radical: política é ética aplicada. O ato de governar (“exercício do poder”) só é legítimo e justo se for guiado pelo conhecimento do que é certo e bom (“ética”). As duas coisas não podem ser dissociadas.
🚨 ARMADILHA CLÁSSICA! 🚨
CUIDADO! A armadilha mais comum aqui é se perder nos detalhes das outras classes (guerreiros, produtores) e não focar na essência do governo. Outra armadilha é a alternativa (C), que menciona “cidadania” e “retórica”. A retórica (a arte de persuadir) era vista por Platão não como uma virtude, mas como uma técnica perigosa, usada pelos sofistas para enganar o povo, exatamente o oposto do governo baseado na verdade buscada pelos filósofos.
A Bússola (O Perfil do Culpado):
- Síntese do raciocínio: A investigação do texto de Platão mostra que a justiça da cidade depende inteiramente da união entre o poder político e a sabedoria moral. O governante ideal não é o mais rico ou o mais popular, mas o mais sábio e virtuoso.
- Expectativa: A alternativa correta deve conectar os conceitos de poder/governo com os de moralidade/sabedoria/ética.
PASSO 4 – ALTERNATIVAS COMENTADAS (A AUTÓPSIA)
Vamos agora confrontar cada suspeito com as conclusões da nossa investigação, com atenção especial à alternativa (D).
- A) cognoscência e relação intersubjetiva.
- A “Narrativa do Erro”: O candidato foca na ideia de que os filósofos conhecem (“cognoscência”), mas a segunda parte do par é vaga.
- O “Diagnóstico do Erro”: Imprecisão Conceitual. Embora o conhecimento seja central, o termo “relação intersubjetiva” (relação entre sujeitos) não captura a essência da questão, que é a aplicação desse conhecimento no governo da pólis de forma moralmente correta.
- Conclusão: 🔴 Alternativa incorreta.
- B) mitologia e teorias cosmogônicas.
- A “Narrativa do Erro”: O candidato associa “filosofia antiga” com mitos da criação.
- O “Diagnóstico do Erro”: Contradição Direta. Platão é famoso por sua crítica à mitologia como forma de conhecimento. Ele propunha um governo baseado na razão (“racionalmente dirigida”), e não nos mitos.
- Conclusão: 🔴 Alternativa incorreta.
- C) cidadania e primazia da retórica.
- A “Narrativa do Erro”: O candidato cai na “Armadilha Clássica”, associando a política grega com a arte da persuasão.
- O “Diagnóstico do Erro”: Contradição Direta. Para Platão, a retórica era a ferramenta dos seus adversários, os sofistas, para manipular a opinião. O filósofo governa pela verdade e pela razão, não pela retórica.
- Conclusão: 🔴 Alternativa incorreta.
- D) moralidade e virtudes cardeais.
- A “Narrativa do Erro”: O candidato identifica corretamente que o governo platônico se baseia na virtude e na moralidade, o que é um ponto central do texto.
- O “Diagnóstico do Erro”: Reducionismo (Descreve a Causa, mas não a Ação). Esta alternativa é uma distratora muito forte porque está parcialmente correta. A cidade ideal de Platão é, de fato, fundamentada na moralidade e nas virtudes (sabedoria, coragem, temperança, justiça). No entanto, a alternativa descreve apenas a qualidade ou o fundamento do governante, mas omite a outra metade da equação inseparável: a aplicação dessa qualidade na arena política. O texto fala de um governo que é “racionalmente dirigido”, o que implica uma ação, um exercício. A alternativa (E) é mais completa por conectar a qualidade (ética/moralidade) à ação (exercício do poder).
- Análise Contextual (Como poderia estar certa?): A alternativa (D) estaria correta se a pergunta fosse “Qual o fundamento principal que qualifica os governantes na cidade justa de Platão?”. Nesse caso, a resposta seria, sem dúvida, a moralidade e a posse das virtudes.
- Conclusão: 🔴 Alternativa incorreta.
- E) ética e exercício do poder.
- Análise de Correspondência: Esta alternativa é o retrato falado da nossa Bússola. Ela une perfeitamente os dois polos da tese platônica: a qualidade necessária para governar (ética, que engloba a moralidade e as virtudes) e a própria ação de governar (exercício do poder). O texto descreve uma estrutura de governo, e esta alternativa é a única que inclui o ato de governar em sua formulação.
- Conclusão: 🟢 Alternativa correta.
PASSO 5 – O GRAND FINALE (APRENDIZAGEM EXPANDIDA)
Frase de Fechamento: Confirmamos que a alternativa E é a correta. A grande lição de Platão é que a política sem uma base ética e filosófica sólida inevitavelmente degenera em uma luta por interesses particulares, a receita para a cidade injusta.
Resumo-flash (A Imagem Mental): Para Platão, entregar o poder a quem não tem ética é como dar a chave de um arsenal a uma criança birrenta.
Para ir Além (A Ponte para o Futuro): O mesmo debate platônico sobre a indissociabilidade entre ética e poder é a base da Governança Corporativa moderna, especialmente no conceito de ESG (Environmental, Social, and Governance – Ambiental, Social e Governança). A visão antiga (a “cidade injusta”) era que o único objetivo de uma empresa (“governo”) era maximizar o lucro para os acionistas (os “proprietários”). A visão ESG (a “cidade justa”) argumenta que uma empresa só pode ser bem-sucedida a longo prazo se seu exercício do poder (suas operações e decisões) for guiado por princípios éticos (responsabilidade ambiental e social). A ideia de que “fazer o bem” é essencial para “se dar bem” é a reencarnação do ideal platônico no mundo dos negócios do século XXI.
